quarta-feira, 28 de maio de 2014

Nossa conversa sobre as Áfricas traz, mais uma vez, o pensamento do Historiador angolano Simão Souindoula. Veja o texto a seguir sobre a presença angolana no Paraguai


  
“Escravos angolanos no Paraguai: uma trágica residualidade identitária”
 Simão Souindoula[1]


Resultado da impetuosa política de ocupação e colonização de territórios no Novo Mundo, empreendida pela Coroa espanhola, os conquistadores ocuparam, nos meados do século XVI, o Alto Rio de la Plata. A introdução dos africanos é iniciada com a autorização dada a Pedro de Mendoza, em 1535. Em 1682, a população níger é de 1134 escravos entre 38666 habitantes.
Em 1723, a componente de origem africana, pura, e avaliada a 1000 indivíduos, librés amparados. Nos finais do século XVIII, regista-se 3947 pretos, ainda escravizados, e 6893  livres, sobre um total de 96 630 habitantes.
Resultado do tributo pagado a guerra e as iniciativas dos Franciscanos, várias comunidades vão organizar-se, a partir de 1740, em aldeias alforriadas, tais como Emboscada, Areagua, Tevego e Tabapy.
Em 1840, recenseou-se 17181 pessoas de cor, dentro das quais 7866 cativos, numa população global de 238 862 indivíduos.  
INSTALAÇAO
Tendo em conta os constrangimentos de fomento dessas terras, introduziu-se, no actual território do Paraguai, directamente através do rio prateado ou pelo incontrolável Mato Grosso brasileiro, uma mão-de-obra de origem melano-africana, principalmente, congo, ngola, mundongo e banguela.
A escolha desta proveniência foi facilitada pela expansão e consolidação da Colónia de Angola e a sua gémea, rio – platense, a do Sacramento, mas igualmente, pela reunificação das Coroas ibéricas, entre 1580 e 1640.  
Inseridas numa sociedade dominada, demograficamente, pelos guaranis, e politicamente, pelos castelhanos, os “cambas” e pardos serão, invariavelmente, minoritários, ai oscilando, ate a primeira metade do século XIX, entre 15 a 20%.
Vitimas, por excelência, de surtos epidémicos da segunda metade do século XIX, e carne a canhão de vários conflitos regionais, sobretudo da desastrosa Guerra contra a Triple Aliança, entre 1864 e 1870, e activos participantes na multi-direccional mestiçagem ocorrida no país, que viu, por outro lado, parar a importação de nigers com a abolição do trafico transatlântico de pecas de Índias, os melanodermes “amparos” ou escravizados passarão de 10%, no inicio do século XX, a 3,5 %, cinquenta anos depois.
Nesta evolução histórica, particularmente, pesada, os bailarinos da zemba ou da curimba, e tocadores da marimba guerilla ou da marimba galopa deixaram marcas linguísticas e antropológicas, de origem bantu, francamente, marginais na cultura nacional deste país da América do sul.
No entanto, neste estado residual, nota-se, reflexo da proveniência da “Cote d’Angola” da maioria de braços escravos, a expressão usual, para designar negro, nas margens do Pilmacoyo, em guarani ou em castilhano, foi emprestado, visivelmente, em kimbundu, kamba.
Isso, integrou a famosa expressão, no idioma ameríndio do pais, Camba memeteco chamento ! São nitidamente todos negros!
Outra ilustração da presença, bem contextualizada, dos angolanos na sua nova nação, é a denominação do celebre batalhão envolvido na guerra da Triple Aliança, em 1862. Constituido, maioritariamente, de negros, foi conhecido como Batalhão Nambi’ i, provavelmente, do bantu, mbi, perigoso.
ORIGENS BANTU
Os indícios linguísticos vindos da área dos Atu são, então, evidentes. Mas, é útil, comprovar isso, examinando o sistema de concordâncias desses falares. A nossa análise incidirá sobre os substantivos kamba, zemba, curimba-marimba e mbi.
KAMBA
É atestado no suposta idioma pré-dialectal, formas radicais no sentido de friend, colega, companheiro, camarada. Duas línguas, justamente, da Colónia de Angola, derivadas, fixaram, em Kimbundu kamba, dikamba. Em Umbundu ekamba, ukamba, amigo de coração de circuncisão termo utilizado Paraguai para designar os negros do Brasil, durante o conflito entre os dois países. O guarani adoptou esta denominação, no sentido de negro.
No bloco linguístico supramencionado, conjunto de origem, o sentimento de afeição é forte, e é assimilado a  amigo de coração ou de circuncisão.
A vivência esclavagista desde a violente captura, o penoso encaminhamento caravaneiro, o emotivo embarque, a mórbida viagem transatlântica, a humilhante inspecção física, o duro trabalho mineiro ou agrícola e a salvadora coabitação social criaram um contexto análogo ao de Angola.
ZEMBA
Malcolm Guthrie aponta vários radicais cujo um é relacionado com dance about in joy. O kimbundu atesta sesemba, dançar arrastando os pés. O umbundu certifica bem esemba, olisemba. O luba lunda cokwe cicimba wino.
Faz alusão a uma serie de acções compassadas, com acompanhamento de palmas, de membranofonos e xilofones, cânticos, execuções lascivas, muita pateada e todos os membros. É baile dos caçadores, no qual eles se trajam de peles.
Compõe, identicamente, uma trama coreográfica mista, em trapalhadas, lenta, guerreira, fúnebre, ritual, pré-nupcial e matrimonial. O termo cobre também danças características da iniciação feminina ou masculina, para celebrar a cicatrização dos iniciados, por morte de um soba. Designa, igualmente, a arte, a habilidade ou destreza nos exercícios coreográficos e o terreiro de danças. Portanto, significativa expressão antropológica bantu, a zemba só podia sobreviver no Alto Rio de la Plata.
MARIMBA. CURIMBA
O proto–bantu supõe a raiz – dimba, xilofone, que deu, em Kimbundu, marimba. No Kikongo madimba. Na Luba lunda cokwe njimba e na  Umbundu elimba.
O continuum paraguaio deste instrumento musical e desta dança aferente é coerente porque muito utilizado no país dos ngola , ndongo, matamba, cassanje, imbangala, pende e Benguela.
MBI
The Connecting Meanings of Common Bantu atesta os radicais –bi, -mpi, become bad, -bib- , -biip-, badness, -bi, no sentido de mau.
Em Kikongo ambi, kiambi. Em Kimbundu dimba. No Luba lunda cokwe –pi. No Nyaneka-humbe omuvi, onombi, ombi. Em Umbundu Yipunu mwifi
Este nome foi aplicado aos militares negros paraguaios pela causa da sua bravura e eficácia. Facto particularmente relevante no corpo dos guerreiros bantu, o termo foi, igualmente, usado nas Caraíbas.

CONCLUSÃO
Apesar desses traços, a influência civilizacional dos cambas foi sempre relativamente marginal e em irreversível desaparecimento.  Assim, raras as vezes são restituídas nas procissões, que eram frequentes durante o século XIX em Asuncion, as mascaras cambas raangas, imagens de negros em guarani.
Figurações da lendária sensualidade dos cambas e a sua propensão a raptar mulheres guarani, proibidas pelas autoridades coloniais, desapareceram do folclore paraguaio. Desapareceu, igualmente, a sincrética festa, feminina, Camba de la Merce, que durou ate o inicio do século XX, e que era suposta favorecer a libertação dos escravos.
Envolvidos numa irreversível dinâmica de interacções civilizacionais, os instrumentistas da “gamba” apresentam, hoje, uma nova estampilhagem identitária, dominada pela cultura castelhana e as influentes expressões guarani. Varias comunidades de escravos ou de homens livres, negros ou pardos, de “origem portuguesa” falavam o guarani e o espanhol, e adoptaram totalmente o catolicismo.
Disposições legais, tomadas na Província, logo no inicio do século XVI, colocavam, uma parte dos melano-africanos, fugida das infernais plantações e minas brasileiras, sob as ordens religiosas. Notar-se-a, dentre dos milhares desses fugitivos, José Domingo Mora, um negro angola e José Domingo Fernandes um negro natural de África.
Em suma, a relativa fraca introdução de contingentes de trabalhadores nigers, na região Alta de la Plata, não permitiu o surgimento de uma verdadeira cultura afro-crioula com elementos congo-angola, bastante, substanciais, como em São Basílio de Palenque ou na Bahia.
Em 1954, a componente afro descendente foi avaliada a um por cento da população paraguaia, com particular concentração em Lomas de Acampamento, perto de Asuncion, San Roaue Gonzales de la Cruz, próxima de Quycuyo, Paraguari, Emboscada, Agua, Canindeyu, Qlto Parana e Pedro Juan Caballero.


PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
CORREIA BARBOSA, Adriano, Dicionário Português -Cokwe, Luanda, 2011.
SILVA, Joaquin da. Dicionário Português – Nhaneca, Lisboa, 1966.
LEGUENNEC, G., VALENTE, J.F., Dicionário Português -Umbundu, IICA, Luanda, 1973.
Mabik-ma-Kombil, Parlons Yipunu, L Harmattan, Paris, 2001.
MC Culloch,. The Ovimbundu of Angola, Londres, 1952.
OBENGA, Th., SOUINDOULA, S.,  Racines Bantu.Bantu Roots, CICIBA, Paris, 1992.
SILVA MAIA, António da, Dicionário Portugues-kimbundu-kikongo, Editorial Missões, Cucujães, 1994.
SOUINDOULA,S., Curso sobre a Historia Geral de Angola, Cadernos n 2, ISCED, Lubango, 1984.
_______________ “ Migrações, fusões e fundamentos históricos antigos dos povos bantu ocidentais”. in Muntu, Revue Scientifique et Culturelle du CICIBA, Libreville, No 2, 1 semestre 1985.




[1] Simão Souindoula, historiador angolano, é Vice-Presidente Comité Cientifico Internacional Projecto da UNESCO “A Rota do Escravo

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